Por que somos contra os modelos animais
Paula Brügger
O reducionismo como base da falibilidade dos modelos animais
Além de indefensável sob o ponto de vista ético, uma vez que submete seres sencientes1 ao sofrimento físico e psicológico (Singer, 1998; Regan, 2001), a vivissecção2 é uma prática que falha em pelo menos um critério fundamental para que seja considerada verdadeiramente científica: predictabilidade. Antes de tecer algumas considerações acerca das razões de ordem epistemológica subjacentes aos resultados pífios provenientes dos modelos animais, gostaria de remeter o leitor a alguns contextos e dados que ilustram a afirmação feita anteriormente.
No que diz respeito a medicamentos, por exemplo, apesar da enorme quantidade de cobaias mortos para supostamente assegurar a eficácia e testar os efeitos colaterais de novas drogas, Greek & Greek (2000, p.117) destacam que “segundo a organização Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, apenas 1% dos novos medicamentos testados em laboratórios vão para o estágio clínico (em que são testados em voluntários humanos). Dos que chegam ao mercado, muitos apresentam sérios efeitos colaterais e riscos não previstos. “Uma revisão realizada pelo governo americano nas drogas lançadas entre 1976 e 1985 revelou que 51,5% delas ofereciam riscos não previstos nos testes” (Barnard & Kaufman, 1997, p.81). Greek & Greek (2000, p.58) destacam que, “a cada ano, dezenas de milhares de pessoas adoecem devido ao uso de fármacos legalmente vendidos. Archibald (2005), que argumenta no mesmo sentido, afirma ainda que os efeitos colaterais de medicamentos prescritos estão entre as primeiras causas de mortes no Ocidente3. Ela cita o caso recente do Vioxx – um fármaco para combater a artrite – que foi retirado do mercado global em setembro de 2004, após ter causado 140.000 casos de ataques cardíacos e derrames somente nos EUA. O fármaco, quando testado em animais não-humanos, se mostrou seguro e até benéfico para o coração deles. Outro exemplo que merece destaque é o das terapias de reposição hormonal. Prescritas para milhões de mulheres, porque diminuíam o risco de doenças cardíacas e derrame em macacos, tais terapias aumentaram significativamente o risco dessas doenças em mulheres e ainda provocaram 20.000 casos de câncer de mama. Archibald cita diversos outros fármacos que matam4 e Greek & Greek (2003, p.112-115) também apresentam uma longa lista de medicamentos retirados do mercado, na Grã-Bretanha e EUA, por conta dos seus gravíssimos efeitos colaterais (que incluem morte). Eles destacam que as drogas listadas representam uma pequena parte da calamidade total. A lista completa é quase inumerável, dizem eles, uma vez que muitos problemas sequer foram relatados.
E por que razão tais drogas são ineficazes e até perigosas? Porque os dados provenientes de testes com animais não-humanos são caóticos e não confiáveis. Eis um exemplo emblemático: “pesquisadores escolheram 6 drogas com efeitos colaterais conhecidos em humanos. Os testes com animais corretamente previram 22 efeitos colaterais, mas incorretamente apresentaram 48 efeitos que não ocorriam em humanos. E mais, os testes em animais não previram 20 efeitos colaterais que ocorrem nos humanos. Portanto, os modelos animais erraram 68 vezes em 90. Assim, em 76% das vezes, os resultados provenientes de experimentos com animais estavam errados” (Lumley and Walker apud Greek & Greek, 2003, p.111)
O modelo animal é falho porque existem diferenças, entre nós e eles, na anatomia, na fisiologia, nas interações ambientais, nos tipos de alimentos ingeridos, etc, que resultam na não-correspondência na absorção, distribuição e metabolismo de substâncias. Ademais, as condições de laboratório são mais controladas do que na vida humana e as doses administradas aos animais podem ser muito maiores do que as prescritas aos humanos, em termos de peso corporal. Portanto, fora o fato de que as vias de inoculação de diferentes substâncias – se oral, anal, peritonial, vaginal, etc – podem exercer uma grande influência sobre o resultado dos testes, a dosagem pode ser também um fator crucial.
Fano (2000), por exemplo, destaca que muitos testes com animais ocorrem em condições (dosagens, métodos, etc) que não têm similaridade com a vida real. Em um experimento envolvendo o adoçante ciclamato, os animais receberam o equivalente humano a 552 garrafas de refrigerantes por dia. Em dois experimentos com tricloroetileno (usado como agente descafeinizante em café) os ratos receberam uma dose equivalente a 50 milhões de xícaras de café por dia. Isso pode falsificar os resultados de duas maneiras: pode envenenar as células e tecidos, tão severamente, a ponto de prevenir uma resposta carcinogênica que em outras condições poderia ocorrer; ou pode sobrecarregar, ou mudar, os processos metabólicos e causar uma resposta carcinogênica que poderia não ocorrer, conclui ela.
Além disso, a velocidade do metabolismo dos animais é variável. Animais de laboratório são em geral menores do que os humanos e, com isso, têm um metabolismo muito mais intenso. Dessa forma, eliminam toxinas mais rapidamente do que os humanos, o que pode impedir que os efeitos tóxicos apareçam, como observa Fano.
Apesar de os vivisseccionistas afirmarem que ratos e camundongos se constituem em bons modelos para estudar doenças e outras condições ou males que acometem os humanos, há expressivas diferenças entre eles e nós. Segundo Greek & Greek (2003, p.121), “ratos respiram obrigatoriamente pelo nariz, o que pode alterar a forma de entrada de uma substância pela corrente sanguínea; a placenta é consideravelmente mais porosa nos ratos do que na espécie humana; devido a diferenças na distribuição da microflora intestinal, eles são muito mais propensos a metabolizar um composto administrado oralmente em um metabólito ativo, ou tóxico; a secreção de ácido no interior do estômago deles é contínua, enquanto no dos humanos ela ocorre apenas em resposta à presença de alimentos, ou outros estímulos. Os ratos são ainda animais de hábito noturno, susceptíveis a doenças diferentes das nossas, têm requerimentos nutricionais também diferentes e são incapazes de vomitar. Todas essas peculiaridades (anatômicas, fisiológicas, etc) afetam a absorção, a farmacocinética e o metabolismo de compostos, ou causam reações inesperadas com relação a um composto”5.
Muitas outras questões que afetam os dados provenientes de testes com animais não-humanos poderiam ser adicionadas aqui como, por exemplo, a influência do enriquecimento ambiental (veja artigo da New Scientist, (173[2333], 09 de mar.2002:11, intitulado “Home comfort for lab animals create problems for researchers”). Mas, afinal, que questões estariam no cerne de tais resultados caóticos?
Os modelos animais são imprecisos porque se constituem numa prática imersa no paradigma mecanicista e, portanto, reducionista, que se tornou hegemônico em nossa cultura. Tal paradigma encontra-se também inextricavelmente associado a uma ética antropocêntrica e especista. A oposição sujeito-objeto, base da pretensa descrição objetiva da natureza, é outra dicotomia que está no cerne do corpus formal do conhecimento em nossa sociedade e também na experimentação animal. Nela, toma-se um animal como modelo de estudo, sendo este analisado segundo suas supostas capacidades de prever ou reproduzir um determinado fenômeno. Dentro do paradigma mecanicista isso faria sentido, pois tratar-se-ia de analisar, compreender, ou identificar, um determinado mecanismo para depois verificar de que forma aquele mecanismo (genético, fisiológico, metabólico, etc) poderia ser usado para predizer outro, o organismo a ser modelado. Ocorre que os fenômenos sociais e naturais são muito mais complexos do que postulam as premissas da visão mecanicista, o que torna esse paradigma inadequado ou, no mínimo, muito limitado para descrever tal gama de complexidade (veja Maturana, 2002; Capra, 1996; Brügger, 2004, p.63-120).
Capra (1996), por exemplo, argumenta que há três critérios fundamentais para uma descrição abrangente da natureza da vida: o padrão de organização (a configuração de relações que determinam as características essenciais do processo); a estrutura (a incorporação física do padrão de organização do sistema); e o processo (a atividade envolvida na incorporação contínua do padrão de organização do sistema). Nessa visão, todos os sistemas vivos são sistemas cognitivos e a cognição sempre implica a existência de uma rede autopoiética, ou seja, a característica básica de uma rede viva é que ela produz continuamente a si mesma, ela se autocria (veja também Maturana, 2002). Esse processo de autocriação também influi na capacidade de formar novas estruturas e novos padrões de comportamento.
Assim, embora haja muitas características comuns entre nós e os outros animais, diferenças microscópicas entre as nossas células e as deles podem levar a erros grosseiros. Todas as espécies – plantas e animais – seguem o mesmo design: são formados pelas mesmas unidades de DNA (A,T,C,G) que são juntadas no mesmo processo. Mas, enquanto o material genético é o mesmo, a composição, os arranjos são diferentes. Isso faz toda a diferença.
O seguinte contexto – que envolve a semelhança entre nós e os chimpanzés – demonstra de forma inequívoca a razão de rechaçarmos o argumento reducionista de que tais animais são excelentes modelos. Segundo Greek & Greek (2003, p.49-50), “se examinarmos os genes que codificam proteínas que atuam como enzimas, ou provêem a base para estrutura, ou movimento celular, a semelhança entre nós e os chimpanzés é maior do que 99%. A diferença está, portanto, não nos blocos de construção, mas na forma como eles são arranjados e comandados por genes reguladores que controlam o padrão e o crescimento. Assim, por exemplo, uma única diferença num aminoácido, entre primatas humanos e não-humanos, faz com que o HIV não se acople ao mesmo receptor celular em primatas não-humanos”.
Essa é a “dialética” da natureza. E é exatamente o que argumenta Capra, no parágrafo anterior (veja também Brügger, 2004, p.125-128).
Assim, o elevado grau de correspondência genética que há entre nós e tais modelos (como primatas e roedores) só faz sentido, em termos de confiabilidade, dentro de uma visão reducionista de ciência. Os animais não-humanos não podem ser considerados como bons “modelos analógicos causais” (CAMs). Segundo os filósofos Hugh La-Follete e Niall Shanks (1996) um modelo analógico causal funciona da seguinte forma: X (o modelo) é semelhante a Y (o objeto a ser modelado) com relação às propriedades {a….e}. X tem a propriedade adicional f. Embora não observada em Y, supõe-se que Y também tenha a propriedade f. Então, se a droga Z causa a morte do modelo animal (por exemplo, a penicilina mata porquinhos da Índia), por analogia, matará os humanos (veja Greek & Greek, 2003, p.45). La-Follete e Shanks (1996) afirmam que “os modelos analógicos causais teriam que apresentar também características comuns; conexões causais entre as características; e ausência de disanalogias relevantes. E afirmam que a possibilidade de haver disanalogias causais relevantes destrói o argumento de que as pesquisas com animais têm importância direta para o estudo de fenômenos biológicos humanos. Isso acontece porque, até que sejam feitos testes com humanos, não há como saber se existem ou não disanalogias relevantes entre nós e o modelo animal estudado. E há fortes razões teóricas para esperar que existam disanalogias causais relevantes. Animais humanos e não-humanos foram submetidos a pressões evolutivas muito distintas. O fato de duas espécies terem propriedades funcionais biológicas semelhantes não nos dá razão para pensar que elas tenham mecanismos causais subjacentes semelhantes. Embora os humanos não sejam ´essencialmente´ diferentes dos ratos, ou tampouco formas de vida ´mais elevadas´, somos diferentes em termos de complexidade. Diferenças entre as espécies, ainda que pequenas, freqüentemente resultam em respostas radicalmente divergentes com relação a estímulos qualitativamente idênticos. Diferenças evolutivas nos sistemas biológicos de humanos e roedores, por exemplo, desencadeiam um efeito cascata que resulta em marcadas diferenças em importantes propriedades biomédicas entre as duas espécies”.
Portanto, a presença de pequenas diferenças no nível celular, como prega a Teoria da Evolução, invalida as extrapolações entre as espécies.
Compreendemos de forma muito limitada a pujança autopoiética da natureza, mas queremos exercer domínio sobre ela. Penso que as questões aqui colocadas devam, portanto, fazer parte do debate sobre a eficácia dos modelos animais como ferramentas de ensino e pesquisa. Isso porque os profissionais que deles se utilizam são, em tese, cientistas e estão produzindo conhecimento, além de estarem formando uma legião de seguidores de seus preceitos cientificamente questionáveis.
Embora hoje não seja mais possível negar a influência dos fatores aqui apontados – os quais concertados entre si podem produzir uma realidade completamente nova e inesperada, com a qual o cientista tem que lidar – os fundamentos epistemológicos subjacentes a tais processos, ainda se constituem numa questão considerada excessivamente abstrata. Entretanto, a aceitação de que há uma interdependência entre variáveis que não podem ser isoladas e estudadas em separado, ou quantificadas em termos de influência, faz parte da essência do método científico – mesmo o mecanicista – ainda que em menor extensão. Essa é uma questão muito mais profunda e crucial do que pode parecer, pois implica compreender verdadeiramente que o conhecimento construído é sempre uma abstração no sentido rigoroso do termo. E que algumas abstrações, ou metáforas, são mais adequadas do que outras para descrever determinadas realidades.
Dessa forma, salvo em casos nos quais os modelos animais tenham sido rigorosamente validados (mas isso implica a morte de milhões deles!), os dados corretos, aparentemente obtidos a partir de modelos animais, são, na verdade fruto da coincidência e do acaso, ou de pistas fornecidas por outros campos de pesquisa. Não refletem o resultado de uma empreitada verdadeiramente científica, uma vez que não implicam num conhecimento minucioso dos complexos mecanismos presentes nos processos estudados6. Tais acertos parecem refletir nada mais do que um pequeno percentual bem-sucedido de meras tentativas e, com isso, não diferem significativamente de outras situações como os índices de acerto em cestas de basquete, por exemplo, por parte de pessoas que não dominam tal esporte.
Urge, portanto, que façamos uma reflexão criteriosa acerca da manutenção desse paradigma ancorado em valores antropocêntricos e especistas. Não é razoável afirmar que é impossível prescindir dos modelos animais quando não há um investimento sistemático (nem em educação, nem em pesquisa) no uso de alternativas, sejam elas técnicas substitutivas ou alternativas no sentido lato (como bancos de dados clínicos, epidemiológicos e outras fontes de informação).
Finalmente, vale dizer que as críticas aos modelos animais fazem parte de uma crítica maior que diz respeito às visões de saúde e doença presentes na medicina que se tornou hegemônica, baseada na intervenção e não na prevenção. Tal visão faz parte de um paradigma que privilegia as soluções “farmaco” e “tecno”-lógicas, como de resto é a ótica dominante em nossa cultura (exemplo emblemático é o tratamento/cura proposto para as “mudanças climáticas” ora em curso). E, mais uma vez, a falta de visão sistêmica jaz na base de todas essas questões.
Notas:
1. Seres sencientes são aqueles capazes de experimentar prazer, dor, alegria e outras sensações e emoções.
2. O termo vivissecção tem o significado de “cortar vivo”. É empregado para designar a realização de operações ou estudos em animais vivos para observação de determinados fenômenos.
3. As primeiras são: câncer, doenças do coração e derrame (acidentes vasculares cerebrais).
4. Alguns fármacos citados por Archibald são o Baycol, o Rezulin, Propulsid, Opren, Eraldin.
5. Há ainda diferenças importantes entre machos e fêmeas, e entre linhagens e resultados de diferentes instituições.
6. Como os chamados “laços de realimentação” e outros mecanismos que podem atuar de forma auto-referencial nos modelos propostos.
Bibliografia:
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BARNARD, Neal & KAUFMAN, Stephen. Animal research is wasteful and misleading. Scientific American, fev. 1997. 80-82.
BRÜGGER, Paula. Modelos animais. In: Amigo Animal – reflexões interdisciplinares sobre educação e meio ambiente: animais, ética, dieta, saúde, paradigmas. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004: 63-120; 125-128).
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FANO, Alix. Beastly practice. The Ecologist, vol 30 (3), maio, 2000: 24-28
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MATURANA, Humberto R.& VARELA, Francisco J.. A árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana. 2ªed. Trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin.São Paulo: Palas Athena, 2002.
REGAN, Tom. Defending animal rights. Chicago: University of Illinois Press, 2001.
SINGER, Peter. Ética Prática. 2ª ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
Paula Brügger é bióloga, professora do Depto. de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ex-membro da Comissão de Ética no Uso de Animais – (CEUA), mestra em Educação e Doutora em Ciências Humanas – Sociedade e Meio Ambiente. É autora dos livros “Educação ou adestramento ambiental?”, que está na 3ª edição, e “Amigo Animal – reflexões interdisciplinares sobre educação e meio ambiente”. Atualmente coordena o projeto educacional “Amigo Animal”.
E-mail: brugger@ccb.ufsc.br