Resposta de George Guimarães ao texto de Nuno Ramos
Resposta de George Guimarães ao texto de Nuno Ramos “Bandeira branca, amor: Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”, publicado no jornal Folha de São Paulo em 17/10/2010
Prezado Sr. Nuno Ramos,
Pude ler hoje no jornal Folha de São Paulo o texto “Bandeira branca, amor: Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”, carta onde o senhor choraminga sobre como está se sentindo “injustiçado, coibido e chocado” enquanto busca, em vão, explicar ao leitor sobre a importância da sua “obra”. Pode ter sido para a sua surpresa descobrir que, assim como a arte, movimentos organizados que clamam por direitos utilizam-se de discursos e ferramentas que nem sempre estão de acordo (ou devo dizer, que muitas vezes estão em desacordo) com o que é aceito pelo status quo e cujas ações muitas vezes não estão abrigadas dentro dos parâmetros da legalidade. Talvez seja a sua falta de contato com qualquer informação que se refira aos movimentos por direitos que tenha gerado a sua percepção sobre a criação de “um caldo e cultura próximo à violência e à intimidação”. Esteja certo de que a violência e intimidação que o senhor pode sentir não estavam sequer próximas daquilo que teria tomado forma caso os urubus não tivessem sido libertados nesse prazo curto durante o qual foram expostos como objetos para suprir a sua falta de criatividade. Acalmadas por indícios de uma solução em andamento pelas mãos do IBAMA, as iniciativas de protestos e intervenções apenas começavam a brotar do movimento de libertação animal nesse curto período de tempo.
Na semana que seguiu ao incidente da inauguração da exposição (no qual os ativistas pelos direitos animais foram agredidos pelos seguranças da Fundação Bienal), houve um segundo protesto, onde 2 ativistas pelos direitos animais se algemaram à sua obra (eu era um deles) acompanhados por 40 outros ativistas, que com sucesso conseguiram passar pelo sistema de segurança e detectores de metais instalados na entrada do prédio portando 8 quilos de metais que foram usados para nos acorrentarmos e algemarmos. Esse protesto ocorreu 2 dias depois do IBAMA ter anunciado o cancelamento da licença de exibição das aves e, por força dessa circunstância, o protesto acabou ganhando um tom moderado. Refiro-me ao protesto realizado dentro do prédio da Bienal no dia 02 de outubro de 2010, que teve 4 horas de duração e foi devidamente abafado pela mídia e propositadamente “esquecido” em sua breve descrição na carta publicada hoje no momento em que o senhor descreve o desenrolar dos fatos. Apesar de termos violado o sistema de segurança da Fundação Bienal, termos sido muito vocais durante o protesto e termos atingido milhares de pessoas pelo tempo que bem entendemos, uma vez que não podíamos ser retirados dali por estarmos algemados, ainda assim digo que o protesto teve um tom moderado. O andamento do protesto teria sido muito diferente caso não estivéssemos praticando a nossa melhor política e paciência em face da decisão do IBAMA ainda pendente de ser cumprida. Afirmo que uma centena de ativistas deixou de estar presente por não serem mais necessários naquele dia depois que decidimos mudar a estratégia em face da decisão pendente do IBAMA, mudança essa que tinha caráter temporário até que os animais fossem de fato devolvidos ao seu local de origem. Para assistir ao vídeo do referido protesto, acesse http://www.youtube.com/user/veddastv (o arquivo de vídeo está publicado em duas partes). O relato completo sobre o protesto pode ser lido em http://www.veddas.org.br.
Na esperança de buscar compreender o disparate que brota da mente de um artista que precisa recorrer ao uso de animais para expressar a sua arte, fiz questão de ler o trecho do seu texto onde há a descrição sobre o que foi pretendido com a “obra” em questão. Após a leitura, prevalece a minha percepção sobre aquilo que afirmei em alto e bom tom a todos os presentes na exposição durante o protesto que realizamos algemados à sua “obra”: a necessidade de usar animais vivos para expressar a arte apenas atesta para a falta de criatividade do artista. Quantos elementos pode a mente de um verdadeiro artista criar sem ter que explorar animais sencientes para transmitir a sua mensagem? Não se trata, portanto, de pretender realizar, como o senhor afirmou, “o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor”, mas de apontar a sua falta de criatividade e protestar a falta de respeito aos limites da ética e da moralidade, elementos esses tão necessários à formação de uma civilização sintonizada com o novo momento planetário que vivemos. Como o senhor deveria saber, a arte, com seu papel educador e provocador do pensamento humano, tem enorme responsabilidade sobre a formação moral da nossa sociedade.
No caso do seu trabalho, ele não é apenas imoral, mas é também criminoso. Inclusive recomendo que já comece a preparar a sua próxima carta choramingando as acusações formais no âmbito criminal que estão sendo encaminhadas ao Ministério Público, já que o seu texto publicado na data de hoje na Folha de São Paulo está distante de poder expressar a grandeza do choque que receberá quando souber que as leis federais e municipais que condenam os atos criminosos levados adiante pelo senhor e pela Fundação Bienal serão cumpridas. Aliás, eu não deveria dizer que você ficará chocado em saber sobre essas leis, já que elas foram apresentadas por defensores dos direitos animais ao senhor e à Fundação Bienal antes mesmo da inauguração da exposição. A minha certeza da execução das penalidades cabíveis parte do fato de que elas já estão sendo e continuarão a ser cobradas por milhares de defensores dos direitos animais distribuídos por todo o país e dispostos a novas mobilizações se isso for necessário.
Em relação à sua impressão sobre a “desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a elem que via nele apenas uma possibilidade de irradiação”, o senhor não poderia estar mais equivocado. Não havia discurso pronto nem tampouco havia a intenção de usar a sua infeliz “obra” como trampolim para coisa alguma. O que houve foi um momento inicial de perplexidade que foi seguido pela elaboração de ações. Digo que houve perplexidade porque, como se não bastassem tantas formas de exploração animal já em operação em nossa sociedade especista, pretendia-se agora ampliar ainda mais os já enfraquecidos limites da exploração de animais como meros objetos. Mais do que isso, mais do que a falta de sensibilidade do artista e dos curadores da Fundação Bienal, há ainda a violação da Constituição Federal e de leis federais e municipais que vedam expressamente a submissão de animais à crueldade, além de, no caso da lei municipal, vedar especificamente a exibição pública de animais em circos e congêneres. Não se trata, portanto, do uso de um discurso já pronto, mas de uma mobilização contra essa aberração que ultrapassa até mesmo os limites já demasiadamente frouxos e aceitos pela sociedade. Prova de que esses limites existem e têm o apoio popular é que eles estão expressos na forma de leis.
Já em relação à sua demanda por coerência em nossa posição, aquilo que o senhor descreve como “vegetarianismo radical”, declarando que deveríamos nos abster do consumo de carne e defender o fechamento de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e a requalificação de nossas relações com “bichos” domésticos, falo por mim e por muitos membros do nosso movimento ao afirmar que concordamos totalmente com a sua percepção sobre a coerência, já que as nossas lutas e práticas abrigam todas essas demandas e vão além. Entre tantas outras práticas que devem ser acrescidas à sua lista, também não consumimos ovos e laticínios, deixando assim de colaborar com as indústrias que exploram e escravizam animais para roubar-lhes esses produtos. O mesmo é verdadeiro para as indústrias do couro, da lã, da seda, dos rodeios, dos circos, das experiências com animais e tantas outras variáveis da exploração animal que permeiam a nossa sociedade, que demasiadamente anestesiada pela cultura de exploração vigente encontra dificuldade para enxergar a intensidade do horror a que bilhões (sim, bilhões) de animais são submetidos a cada ano com o único propósito de servir aos interesses (e, na maioria dos casos, ao luxo) humanos.
Qualquer forma de arte que reforce a percepção equivocada de que animais são objetos destinados ao uso humano é nociva à formação de uma cultura de respeito a todas as formas de vida. Portanto, Sr. Nuno Ramos, pare de choramingar sobre as “injustiças” com as quais julga ter sido vitimado e assuma o seu equívoco com honra e tranquilidade, pois assim como tantos outros, o senhor não passa de mais uma vítima dessa sociedade especista que entende que os animais não-humanos pertencem a espécies inferiores e por isso podem ser subjugados ao nosso bel prazer. A sua formação cultural e artística não passa de mais um fruto dessa cultura de exploração e dominação que não tem mais espaço no modelo de sociedade que o planeta precisa e que por isso está fadada a ruir. A boa notícia é que qualquer um está possibilitado a despertar para uma nova percepção sobre essa realidade e assim vislumbrar a dimensão da missão que está por ser realizada: a revisão da forma com que nos relacionamos com a natureza e a aceitação do desafio de transmitir à sociedade uma mensagem que esteja verdadeira e integralmente imbuída de intenções que positivas, sanas e justas. A arte, sem dúvida alguma, tem muito a contribuir para esse despertar e é por isso que a arte jamais pode estar aliada à crueldade.
George Guimarães, nutricionista, 36 anos
RG: 13.564.803-8 SSP/SP
Presidente da ONG VEDDAS – Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos Animais e Sociedade
(Leia aqui o texto “Bandeira branca, amor: Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”.)