George Guimarães, nutricionista especializado em dietas vegetarianas e ativista pelos direitos animais

Nesse mês a Revista dos Vegetarianos completa 4 anos e, por considerar a publicação um veículo de extrema importância para a difusão do vegetarianismo* no Brasil, estive refletindo sobre a evolução da aceitação do tema por parte do público, da mídia e do meio acadêmico. Para resumir os elementos que me vieram à mente durante essa reflexão, me limitarei a dois episódios recentes, colocando-os em perspectiva com dois episódios antigos.

Foi em 1995 que eu fui proibido por uma professora do curso de nutrição de substituir o tema do meu grupo em uma aula de técnica dietética (algo como uma aula voltada a técnicas de preparo de alimentos) para uma que utilizasse apenas alimentos vegetais e não tão convencionais, como o tahine, o broto de alfafa e grãos germinados. A resposta dela foi para que eu fizesse isso quando eu fundasse a minha seita. Bom aluno que sou, foi o que eu fiz e hoje sirvo esses e outros alimentos “proibidos” nas unidades do VEGETHUS Restaurante Vegano diariamente para mais de 200 pessoas.

Muita coisa aconteceu nesse meio tempo em relação à aceitação do tema da nutrição vegetariana no meio acadêmico e devo dizer que há muito a ser trilhado até que a nutrição vegetariana seja abordada de maneira satisfatória nos currículos das faculdades de nutrição. No entanto, já há bons sinais de mudança. Entre tantas oportunidades que surgiram nos últimos anos para falar com nutricionistas e estudantes de nutrição em suas universidades, trago o exemplo recente de agosto desse ano, quando fui convidado a palestrar em um evento promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde 250 alunos foram reunidos para discutirmos o tema. Perguntei a uma das professoras responsáveis pelo evento o motivo da escolha do tema e ela me respondeu: “eu sou protovegetariana”. Pelo uso correto do termo, pude confirmar que ela é também leitora da Revista dos Vegetarianos, já que o novo termo havia sido discutido em uma edição recente.

Já para ilustrar a evolução da aceitação da mídia e do público, me lembrei que foi em 1996 que participei do meu primeiro debate ao vivo na TV sobre o tema. Desde então, já foram algumas dezenas desses e é notável a mudança que se deu no foco desses debates. Contrastando esse primeiro debate com o mais recente, que ocorreu em outubro de 2010, promovido por um programa de rádio, posso observar que não apenas os tópicos em debate mudaram, mas foi mudada toda a dinâmica da discussão. No primeiro (e em todos daquela época), o imperativo era questionar de onde o vegetariano tira as suas proteínas e outras questões que partiam do pressuposto de uma possível deficiência nutricional entre os adeptos. Do outro lado do debate, especialistas de formações diversas traziam essas questões com propriedade e para rebatê-las era necessário começar com o beabá da nutrição vegetariana, desvendado desde o mais remoto dos mitos, o que deixava pouco espaço para o aprofundamento do debate.

Com muitas variações nesse meio tempo, o que se viu no exemplo do episódio desse mês (e em todos os mais recentes) foi um questionamento sobre as possibilidades gastronômicas do vegetariano, o motivo pelo qual eles gozam de melhor saúde e quais são as motivações éticas e ambientais para a escolha. Nada sobre proteínas, ferro ou cálcio. Nada de especialistas. Aliás, tem sido raro encontrar um especialista disposto a debater o tema. Quando encontramos um que se disponha, ele geralmente faz a linha do caminho do meio, não se opondo às ideias do vegetarianismo, afirmando que ele é adequado para aqueles que o escolhem e praticam com critério, mas argumentando que ele pode não ser para todos. Naturalmente, sabemos que o vegetarianismo é sim para todos (sendo não somente adequado, mas também o mínimo a ser praticado por qualquer indivíduo que se diga ético). O que quero notar aqui é que a oposição mais radical agora se limita a adotar um discurso que não passa do moderado.

Para esse episódio, o melhor oponente que conseguiram foi uma ex-protovegetariana que relatava os motivos pelos quais não teve sucesso em sua tentativa de deixar o consumo da carne animal, admitindo repetidamente ser muito apegada ao seu sabor. Não apenas nesse episódio, mas muito comumente em tempos recentes, a defesa pelo consumo da carne e de outros produtos animais tem se pautado, muito mais do que pela sua suposta necessidade, no prazer do consumo ou na dificuldade por abandoná-lo. Considero ser esse um perfeito sinal de que o debate não está mais na adequação da dieta vegetariana, mas na capacidade do indivíduo em praticá-la. Até mesmo quando vamos além da questão dietética, entrando no campo da ética, os debatedores têm se limitado a declarar que admiram a postura do vegetariano, mas não possuem a mesma determinação para traduzir suas convicções em ações práticas.

O que quero ilustrar tomando como exemplo a maneira como têm se apresentado os debates sobre nutrição vegetariana é que há uma clara mudança de paradigma na maneira como o público e os especialistas percebem e aceitam o vegetarianismo, que agora passa a deixar a lista de práticas excêntricas para configurar na lista de meras opções, passando a ser visto como uma legítima expressão de diversidade. Apesar de não o isentar de questionamentos, essa legitimidade implica que seja aceito e respeitado. Nesse momento em que essa aceitação do vegetarianismo já se torna evidente na mídia e no meio acadêmico, não há mais que se falar em “aceitação” ou “inclusão social” do indivíduo vegetariano. O que pode haver é uma dificuldade de aceitação em um pequeno círculo social ou familiar, mas tendo como vantagem aquilo que é aceito e espelhado pela sociedade como um todo, tem sido cada vez mais fácil romper as barreiras que ainda possam existir nos pequenos círculos.

Ademais, a partir do momento em que a ética se torna um argumento constante na opção pelo vegetarianismo, não há que despender energia reivindicando aos vegetarianos qualquer privilégio ou necessidade de inclusão, pois torna-se ainda mais óbvia a posição de que o fim de nossas ações não está voltado para nós mesmos, mas sim para os animas , o que torna irrelevante qualquer angústia ou queixa resultante da dificuldade de colocar em prática o vegetarianismo.

São eles, os animais, que estão sendo oprimidos, explorados e excluídos aos milhões a cada dia. Desviar o discurso para reivindicar aos vegetarianos qualquer direito ou necessidade é tirar o foco dos direitos animais (que são o fim) para colocá-lo nos direitos dos vegetarianos (que são meros meios). Diferentemente de outros movimentos sociais, não somos nós quem nos beneficiamos com os resultados das nossas ações, mas sim o outro. Nesse caso, um outro de outra espécie. Nada mais somos do que os seus porta-vozes e, pelo bem do movimento pelos direitos animais, jamais devemos pretender ser mais do que isso.

Ser vegano é o mínimo que um indivíduo pode fazer e reclamar que isso gere alguma falta de aceitação (especialmente nesse momento em que a aceitação é imensamente maior do que era há 30, 20 ou 10 anos) é declarar total falta de habilidade para colocar em perspectiva a dimensão da opressão contra a qual lutamos, opressão essa dirigida aos animais em uma proporção infinitamente maior do que o desconforto que possa estar sendo experenciado por qualquer vegetariano que desfrute da sua opção nos dias de hoje.

A luta pela aceitação de nossa opção pode ter sido importante no passado, mas ela jamais foi pensada como um objetivo final, podendo ter sido, no máximo, um meio para permitir a adesão de mais pessoas. Tendo conquistado esse benefício da aceitação (sim, acordemos, ele já foi conquistado) com o trabalho árduo dessa e de muitas gerações ao longo dos séculos, sigamos agora adiante. Agora que mais pessoas já podem ser abrigadas nesse lugar que soubemos construir, e sem jamais pensar que é aqui que descansaremos, continuemos a trabalhar para despertar a consciência em relação à causa animal, pois mesmo nesses tempos de mudança, ainda são muitas as mudanças pelas quais eles há tempos esperam.

* Conforme a nova definição que conceitua como protovegetarianos os indivíduos que mantêm o consumo de derivados animais (ovos e laticínios), os termos ‘vegetarianismo’ e ‘vegetariano’ são usados aqui para classificar o indivíduo que se alimenta exclusivamente de alimentos de origem vegetal. O vegano é o vegetariano que vai além da opção alimentar e exclui os produtos de origem animal de outros aspectos do seu modo de vida.


 

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