Quem quer se mandar do planeta?
George Guimarães
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Junho de 2010
O mês de junho de 2010 começou bem, com a publicação de um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o impacto ambiental dos nossos padrões de produção e consumo. Produzido pelo Painel Internacional para o Gerenciamento Sustentável de Recursos, que é abrigado pelo Programa de Meio Ambiente da ONU, o relatório aponta claramente para a atividade pecuária como sendo a maior responsável pelo aquecimento global. Os dados apresentados só vêm a confirmar relatórios anteriores dessa e de outras organizações mundiais que apontam no mesmo sentido, mas dessa vez de forma muito mais clara e direta. O relatório de 112 páginas poupa o leitor do trabalho de ter que analisá-lo minuciosamente em busca das evidências sobre a responsabilidade da produção de carne e laticínios no prejuízo ambiental. Desse modo, a transcrição literal de alguns de seus trechos é suficiente para deixar claras as conclusões desse Painel Internacional da ONU sobre o tema.
Um trecho do relatório afirma: “O uso de terra e as emissões [de gases estufa] dependem fortemente da dieta. Produtos animais, ambos a carne e os laticínios, em geral necessitam de mais recursos e geram emissões mais altas do que as alternativas baseadas em origem vegetal”. Em outro trecho, lê-se: “Uma redução substancial nos impactos somente seria possível com uma mudança dietética mundial que se distancie dos produtos animais”. E ainda: “A produção de biomassa agrícola, especialmente os produtos animais, é e continuará sendo um processo de transformação ineficiente quando comparado à maioria dos processos industriais”. Ou seja, se a produção de alimentos gera um peso ambiental, o maior peso está na produção de alimentos de origem animal.
Os gráficos apresentados no relatório mostram os produtos animais como sendo responsáveis por mais de 20% do potencial de aquecimento global, cerca 68% da competição pelo uso de terras e cerca de 34% do consumo de materiais de acordo com o seu peso ambiental. Para colocar em perspectiva, a participação de combustíveis (carvão, gás natural e petróleo) nas três categorias referidas são, respectivamente, 24%, 06% e menos de 30%. Diante disso, o relatório afirma que “o uso de carros para transporte privado, o consumo de carne e laticínios e o uso de equipamentos elétricos têm uma participação desproporcionalmente grande nos impactos ambientais”.
No Brasil, a repercussão da notícia foi ínfima. Ao contrário, o Congresso Nacional e a sua bancada ruralista ameaçam mudar o código florestal para permitir a derrubada de novas áreas de floresta para abrir espaço para o agronegócio (entenda pecuária), tirando dos milhões de hectares de florestas virgens a proteção atualmente em vigor. Mas como apenas quase tudo está perdido, o Ministério Público Federal (MPF) lançou, com o objetivo de combater a “carne de desmatamento”, uma campanha publicitária com direito a vídeo, website e tudo o mais. Nela, o MPF pede ao consumidor que não compre carne produzida em áreas ilegais (como se isso viesse estampado na embalagem). No entanto, se o Congresso Nacional conseguir alterar o Código Florestal, daí os milhões de hectares que serão derrubados para virar pasto deixarão de ser ilegais e por conseguinte terão a aprovação do MPF, que brigará pelo direito dos pecuaristas em desmatar essas mesmas áreas que hoje são consideradas merecedoras de preservação. Obviamente, o problema não está na “carne ilegal”, mas na carne. Qualquer carne. Aliás, está mais na carne legal do que na carne ilegal, já que a maioria da carne é produzida de maneira legal (ou o que a legislação entende por legal). O problema é que o fato de a carne ser legal pouco muda o impacto que ela causa no meio ambiente e como consequência na vida de animais humanos e não-humanos que nele vivem e dele dependem. Nem tampouco muda o impacto direto da sua produção sobre a vida do animal que foi explorado para esse fim.
De qualquer maneira, por mais nobre que tenha sido a intenção do MPF, a campanha não foi bem recebida pela mídia brasileira, que fez duras críticas que, é claro, não derivam do mesmo foco que as ponderações anteriores, mas da defesa dos interesses do setor pecuário brasileiro. Ironicamente, na mesma semana da publicação do relatório da ONU, a mídia brasileira taxou a campanha contra a “carne de desmatamento” como sendo um ato de “criminalização da pecuária brasileira”, acusando ainda o MPF de irresponsabilidade por ter colocado em questão os empregos e a fonte de alimento de milhares de famílias brasileiras. Em resumo, o MPF foi infeliz tanto com os pecuaristas quanto com os ambientalistas e defensores dos direitos animais.
E por falar em campanhas publicitárias e insanidades do mês, o governo federal, através do Ministério da Ciência e Tecnologia e em parceria com o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), lançou uma campanha publicitária pró-vivisseccionista. Isso mesmo, o bizarro mês de junho de 2010 viu o lançamento de uma campanha publicitária custeada em um milhão de reais (financiada com verba pública) que objetiva desinformar a população sobre os benefícios e indispensabilidade da indústria da vivissecção, garantindo assim (e ao custo da tortura e morte de milhões de animais sencientes) a sobrevivência em território nacional dessa indústria bilionária que já não encontra mais o mesmo espaço em territórios onde a ciência e a ética começam a ganhar uma nova cara. Faz isso também ao custo da saúde e vida de milhares de animais humanos que sofrem as consequências da perpetuação das falácias dessa indústria arcaica. Aproveitando a audiência da Copa do Mundo e a onda de alienação promovida por ela, essa pitada de desinformação e retrocesso parece ter encontrado o momento perfeito para o seu lançamento.
No entanto, o mês que testemunhou uma nova geração de malabarismos da (e através da) mídia brasileira na defesa dos interesses da indústria da exploração animal e em detrimento da informação sana e científica que aponta justamente para a direção oposta não teria sido completo não fosse pelo tratamento dispensado à questão baleeira. Enquanto a mídia britânica investigou e divulgou provas contundentes sobre o escândalo do pagamento de propinas pelo governo japonês a países pequenos em troca de votos em favor da legalização da caça comercial de baleias na Comissão Baleeira Internacional, o editor de Ciência de um dos principais jornais brasileiros assinou um artigo intitulado “Matem as Baleias!”, onde o infeliz (o adjetivo é bastante apropriado) defende que liberar a caça é o melhor a se fazer, inclusive para as baleias que serão mortas. Ele reduz a questão a uma mera disputa geopolítica, o que não deixa de ser, já que o Japão somente insiste em manter a caça de baleias por mero orgulho nacionalista, haja vista que a atividade sequer tem sido rentável nos últimos anos graças à ação de grupos conservacionistas. E mesmo quando a atividade era lucrativa, não tinha o menor impacto no PIB daquele país.
Há ainda outras questões a serem consideradas e que vão além da questão geopolítica, passando pela ética e pela preservação ambiental, evidenciadas pelo fato de atualmente restarem no planeta apenas três nações baleeiras, sendo que uma delas, a Noruega, acaba de receber (nesse mesmo mês ambíguo) um ultimato da União Européia que declarou que a nação não será aceita no bloco econômico caso não cesse a atividade de caça às baleias. Sobretudo, o fato de o Japão ter que recorrer a subornos para conseguir manter a sua posição de caçador não deixa dúvidas de que, na opinião da comunidade internacional, essa atividade já está com os seus dias contados.
Para fechar o infeliz artigo, o autor aponta que o “sentimentalismo” daqueles que querem acabar de uma vez por todas com essa prática traz empecilhos ao governo desse país que só faz querer expressar o seu direito de explorar o oceano como bem entender. De fato, um pensamento que está em pleno acordo com as causas que nos levaram à crise ambiental que vivemos hoje e que, a julgar pelo balançar do navio arpoador, só tenderá a se agravar.
Já que não podemos (nem devemos) nos mandar do planeta, resta-nos trabalhar para transformar esse cenário. Se ainda há alguma chance de reversão da atual crise, a questão animal está no cerne dessa transformação, que não se dará pela mídia, nem será operada pelo governo, nem será apoiada pela esmagadora maioria da população num primeiro momento. A transformação na consciência animal, necessária para revolucionar a situação planetária, não se dará pelas mãos do outro nem será guiada pelos inebriantes instrumentos de comunicação em massa que nos trouxeram até a realidade atual. Ela se dará pelas suas mãos (sim, você, leitor) e pelo seu trabalho, utilizando a força e o poder de comunicação que você é capaz de gerar. É no poder individual, não na mídia nem nos governos, que reside esperança para os animais e para a continuidade de toda a vida nesse nosso planeta natal. O que está fora está perdido. O que está dentro sempre pode frutificar. Frutifique!